“Temos de aprender algo essencial e fundamental, algo que precisa de ser aprendido desde logo: como respeitar a criança. Talvez diga que sabe como respeitá-la, e talvez seja verdade, mas de uma maneira teórica e moral. E eu quero dizer literalmente: as crianças devem ser respeitadas como personalidades sociais e humanas de primeira grandeza. Por exemplo, nós achamos natural entrar e dizer às crianças: ‘O que estão a fazer?’, ‘Porque fizeste isso?’. Com grande frequência a criança não sabe responder. Essa interrupção abrupta não é sinal de respeito. Fazemos isso porque achamos que a personalidade da criança é inferior. Nisso estamos errados.” (Maria Montessori)
A aplicação dos princípios que estão na base do Método Montessori implica um respeito pela Criança que é “revolucionário”, aproveitando a expressão de Gabriel Salomão do Lar Montessori, no lindíssimo artigo “Respeitar a Criança é Revolucionário”.
Não quer com isto dizer que as pessoas no geral não respeitam as Crianças com quem lidam. O tipo de respeito aqui em causa é que é diferente, pois deixa de estar condicionado a um conjunto de preconceitos que nos foram incutidos tantas vezes através da nossa própria educação, e passa a reflectir aquele que é um “novo olhar sobre a Criança”.
Revolucionário, pois quebra com estes preconceitos e tem implicações muito importantes e definitivas na forma como lidamos com as Crianças e, em consequência, na forma como estas se desenvolvem e estabelecem importantes alicerces da sua personalidade como a confiança em si mesmas, na sua capacidade de concentração e foco, nas suas independência e autonomia.
Mas que implicações práticas tem este novo conceito de respeito? Que mudanças trás na nossa vida diária? Apresentam-se em seguidas alguns pontos essenciais que acabam por estar todos relacionados entre si, e que caracterizam parte da base que constituiu o Método Montessori, e outros modelos alternativos também.
1. Nunca acelerar o ritmo natural de desenvolvimento de uma Criança
Das acções mais comuns e melhor intencionadas dos pais e educadores é tentar ajudar as Crianças a adquirirem certas habilidades, ou porque a sociedade diz que é já está na altura, ou porque sentem que desta forma as estão a ajudar.
O exemplo de pegar nas mãos de um bebé e segura-lo para assim aprender a andar é dos mais comuns, ou tentar senta-los e mante-los sentados, entre outras coisas que seguem pela infância fora.
A Dra. Maria Montessori referia que não há nenhum músculo, função ou ferramenta que esteja pronta a ser utilizada pela Criança, que não o vá ser. E isto aplica-se a tudo. Ao andar, ao gatinhar, ao falar.
Ao incentivarmos uma Criança a andar segurando-lhe nas mãos, sendo certo que ela ainda não é capaz de o fazer sozinha e tem maior preferência em gatinhar, estamos a transmitir-lhe precisamente essa ideia: de que não é capaz de fazer as coisas sozinha.
Mas ao mesmo tempo, estamos a criar obstáculos a que o seu processo de desenvolvimento decorra ao seu ritmo natural e próprio e por todas as etapas pelas quais tem de passar, o tempo que for necessário para aquela concreta e única Criança. Por fim, estamos ainda a retirar-lhe a oportunidade de se alegrar profundamente e fortalecer a sua autoconfiança quando um dia, por si, sentindo-se capaz, começar simplesmente a dar os seus primeiros passos, de forma totalmente autónoma.
A intenção é a melhor, mas a verdade é que em vez de ajudarmos ao incentivarmos a aquisição dessa habilidade, não só estamos a criar obstáculos, como estamos a condicionar de certa forma o fortalecimento e estabelecimento de uma autoestima forte e de uma crença de que é capaz de fazer as coisas por si só, que a acompanhará na sua vida de adulto.
2. Evitar criar obstáculos ao desenvolvimento
Se por um lado tentamos tantas vezes acelerar o seu desenvolvimento, outras vezes porém nem nos apercebemos de que criamos obstáculos a esse desenvolvimento.
Todos os exemplos deste artigo representam obstáculos ao desenvolvimento. Mas para melhor ilustrar esta situação, pensemos no babytalk. As Crianças entre os zero e os seis anos de idade atravessam um período sensível para a aquisição de linguagem, sendo capazes de uma aquisição de vocabulário e mesmo de aprendizagem de línguas estrangeiras, com uma tal facilidade e ausência de esforço que ultrapassado este período, nunca mais se verificará com a mesma intensidade.
Se pensarmos bem, quando falamos com a Criança em babytalk é como se estivéssemos a desconsiderar este incrível poder das Crianças, e, de certa forma, a agir com ela de uma forma que pode traduzir um certo desrespeito, nesta perspectiva revolucionária de respeito. Não falaríamos desta forma com nenhum adulto, e se o fizéssemos seriamos certamente repreendidos. Porque será a Criança digna de um respeito diferente, se para além disso, atravessando este período sensível, ela é capaz de uma compreensão e de uma aquisição de vocabulário que deveremos incentivar, ao invés de reprimir? Não será uma demonstração de respeito olhar para a Criança como um ser profundamente capaz de aprender e compreender aquilo que lhe dizemos e transmitimos?
3. Nunca interromper o trabalho de uma Criança
Outra das acções que em Montessori representam algo de revolucionário em relação ao que nos foi transmitido pela sociedade e pela nossa cultura, é a premissa de nunca interromper uma Criança que “trabalha”, a não ser quando absolutamente necessário.
“Trabalho”, como a Dra. Maria Montessori gostava de chamar, é uma expressão que de certa forma dignifica tudo o que uma Criança faz e a que normalmente chamamos de brincadeira, pois tudo isso é trabalho de autoformação e é trabalho que implica o desenvolvimento da concentração. Uma capacidade fundamental para o seu crescimento e uma capacidade que se bem trabalhada e desenvolvida, será levada para o resto da vida e representará uma ferramenta essencial para desempenhar acções em estado mindfull, com todos os benefícios a isso associados.
Ora, tantas vezes um bebé está concentrado a observar um mobile ou alguma coisa que captou a sua atenção, ou uma Criança está entretida a tirar as panelas de uma gaveta ou os livros de uma estante, ou a soprar as bolhas que rastejam pelas paredes da banheira, ou a brincar com uns blocos, e, mais uma vez com a melhor das intenções, ou porque tem de aprender a não desarrumar, ou porque é hora de ir jantar, ou porque simplesmente queremos que ela veja algo ou dar-lhe um sorriso, interrompemos esse momento.
Mais uma vez, e sem querer, podemos estar a quebrar um período de concentração que é muito importante para o desenvolver e fortalecer da Criança, profundamente relacionados com o seu desenvolvimento cognitivo e neurológico, e do qual a Criança sai profundamente feliz e realizada.
Além disso, se nos tentarmos colocar numa situação semelhante, como no caso de estarmos a ler um livro ou profundamente concertados numa actividade que realmente queremos estar a fazer, daquelas em que até perdemos a noção do tempo, e alguém, sem qualquer aviso, nos retira o livro da mão e nos leva para outro lado, o que iriamos sentir? É o tal respeito revolucionário da Criança.
4. Mais disponibilidade do que presença
A Criança mais do que a nossa presença precisa da nossa disponibilidade.
Disponibilidade para estarmos com a ela a subir e a descer quarenta vezes o vão de escadas, sabendo que está em pleno período sensível de movimento. Disponibilidade para evitar o máximo possível tê-la presa pela nossa conveniência em carrinhos, marsúpios, espreguiçadeiras, sabendo que cada momento desses representará, seja no parque a atirar-se para a relva e a seguir ao seu passo, seja no supermercado a cheirar todas as frutas, seja no centro comercial a correr pelos corredores, uma oportunidade de movimento, uma oportunidade de desenvolvimento. Não é difícil compreender porque uma Criança que está há trinta minutos sentada num carrinho de supermercado comece a ficar impaciente. A natureza pede-lhe movimento, pede-lhe trabalho, que nós tantas vezes contemos com a melhor das intenções, mas para nossa conveniência.
Tudo isto exige a nossa disponibilidade, mais do que presença, o que pode ser extremamente desafiante nos dias que correm. Mas se tentarmos treinar um pouco o estabelecimento de prioridades, se por um dia desligarmos a televisão, tentarmos arranjar uma alternativa para que se entretenha sem ser com um telemóvel durante um jantar, se formos ao supermercado sabendo que vamos demorar duas horas mesmo que seja só para comprar maças, se deixarmos a louça para depois, se não nos preocuparmos porque vai ficar trinta minutos a mais no banho, tudo são gestos que farão toda a diferença.
Toda a diferença no desenvolvimento e confiança que estabelece em si mesma, pois por um lado poderá concluir os trabalhos do seu interesse e guiada pelo seu professor interior, mas por outro lado porque sente e absorve que os seus adultos de referência têm tempo para ela, estão lá para ela, porque ela é importante, porque importa que participe verdadeiramente na vida e conversas da família, e isto será mais uma crença que levará.
5. Nunca ajudar uma Criança que acha que pode fazer algo sozinha
Outro grande obstáculo ao desenvolvimento é uma tendência de os adultos em se substituírem à Criança em tantas actividades seja da vida prática, seja mesmo de brincadeira, o que sem querer transmite uma ideia de que elas não são capazes de o fazer sozinhas, e de que precisam dos adultos para o fazer.
Se uma Criança começa a tentar colocar uma caixa de dentro de outra caixa, ou a inserir um puzzle dentro de uma ranhura especial, e por estar a levar demasiado tempo, a tendência é de por vezes pegar na sua mão e conduzi-la ao resultado esperado,. Por outro lado, tantas vezes não há tempo para deixar que a Criança tente vestir-se sozinha, coloque as coisas dentro da mochila que vai levar para a escola. Ou ainda, não deixar um copo de água à disposição para que a Criança se sirva quando quer, roupas acessíveis para que possa escolher se quer levar uma blusa branca ou amarela para a escola.
Dar-lhe a possibilidade e o tempo de fazer por ela são acções que representam um profundo respeito pelo seu processo e ritmo de aprendizagem, ao mesmo tempo que lhe transmitem os tais valores de auto-confiança em si mesma. É revolucionário respeitar o ritmo da Criança e deixa-la ter o gozo de sentir que consegue, que é capaz de fazer as coisas por si.
6. Nunca bater numa Criança
“Bater num adulto é agressão, num animal é crueldade, numa Criança é… Educação?”. Esta incrível frase de Doutora Maria Amélia Azevedo, coordenadora do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) neste artigo da UptoKids, diz tudo sobre este assunto, que representa uma absoluta falta de respeito pela Criança, ainda que bem-intencionada.
Além disso, importa reter que bater numa criança (mesmo que seja só para assustar com o barulho) para além de que lhe transmitir a falsa ideia de que bater é uma forma de resolver problemas, diz ainda que os mais fortes podem bater nos mais fracos para seu bem. Não serão estas crenças que estarão na base de tantos conflitos?
7. Nunca falar mal de uma Criança, seja ou não na sua presença
Tantas vezes, mesmo sem dar conta, por exemplo se a Criança não anda ao ritmo que se espera, se não começa a falar como queremos, a mesma é chamada de “preguiçosa”, ou se não faz as coisas como queremos “desobediente”, e tantas outras coisas mais.
A intenção mais uma vez não é má, mas sem querer estamos a transmitir mensagens à Criança que vão ficando no seu subconsciente, e que muitas vezes darão lugar a crenças que terão implicações definitivas nas suas vidas, designadamente relacionadas com a sua auto-confiança ou percepção de características próprias.
Fazer considerações negativas sobre os comportamentos das Crianças, seja ou não na sua presença, não é em nada benéfica nem para elas, nem para os adultos. Traduz uma atitude que reprovamos objectivamente na sociedade e que deve ser evitada, uma atitude que encalca nos adultos uma crença sobre a forma como a Criança é, e uma atitude que não se coaduna com a compreensão de que cada Criança tem o seu ritmo e um processo de desenvolvimento próprio, que deve ser conhecido.
Todas estas formas acima descritas representam aspectos que de certa forma vêm revolucionar o conceito de respeito para com as Crianças, e que traduzem um conjunto de acções muito maior que podemos desde já começar a aplicar junto das nossas Crianças.
São apenas indicadores de uma realidade muito maior, e que exigem trabalho e disponibilidade. Disponibilidade para fazer diferente e disponibilidade para quebrar com aquilo que é a nossa cultura, a nossa mentalidade. E isto, sendo nós adultos, não é nada fácil. Mas elas merecem o nosso esforço e cada pequeno gesto que já implique uma mudança, já fará toda a diferença, não só terá efeitos no seu desenvolvimento, como lhes transmitiremos valores que levarão para o resto da vida, e de que o nosso Mundo tem tanta sede.
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