Tivemos a oportunidade de assistir a uma iniciativa promovida pelo Lead Montessori, que reuniu algumas Formadoras AMI para partilharem os seus pensamentos sobre a forma de lidar com as Crianças neste tempo de guerra, tendo em conta as diferentes faixas etárias.
A gravação da palestra pode ser encontrada aqui, em língua inglesa, e neste artigo deixamos algumas das ideias principais a reter.
As Crianças referidas aqui não são as Crianças que estão no centro ou directamente envolvidas no conflito, pois naturalmente que para essas a abordagem deverá ser diferente. O objetivo aqui é o de suportarmos todas as Crianças, famílias e pais das nossas comunidades, dando luzes sobre a forma como devemos verbalizar ou exteriorizar os nossos sentimentos e procurar viver em Paz. Tal como refere Carla Foster, temos duas formas de lidar com as ameaças: defesa/agressão ou procurando a nossa comunidade e fortalecendo essa comunidade, procurando encontrar, juntos, soluções para promover a Paz. Todos temos de nos juntar, independente das nossas opiniões, e de nos unir pelo benefício das Crianças.
Posto isto, as características das Crianças diferem muito tendo em conta a faixa etária ou plano de desenvolvimento em que se encontram. É fundamental que não nos esquecemos que as Crianças não são Adultos em miniatura, e que a forma como assimilam e integram os facto que veem e assistem, é completamente diferente da nossa.
Elas estão em fase de construção de si mesmas, e aos Adultos compete assegurar que essa construção é feita com alicerces de Paz e sempre, mas sempre, respeitando aquilo que é possível para elas, tendo em conta os seus ritmos, características e sensibilidades.
Crianças dos 0 aos 3 anos
- Não devemos expor as Crianças mais novas a qualquer tipo de notícia, conversa ou imagem relacionados com a guerra, e toda a comunidade precisa de estar desperta para esta necessidade (pais, professores, avós, amigos).
- As Crianças mais novas não estão preparadas para este tipo de exposição que pode magoar e ferir seriamente a sua mente. Não nos podemos esquecer que somos os guardiões de um espaço seguro para as Crianças, e que elas são dotadas de uma Mente Absorvente Inconsciente caracterizada por um enorme poder de absorção e assimilação. É preciso um cuidado redobrado em tudo aquilo que possa ser absorvido de forma inconsciente e absolutamente incompreensível por parte da Criança.
- Por isso é essencial agir e pensar de forma a assegurar essa segurança emocional, o que implica, neste momento, um cuidado reforçado nas conversas que temos diante delas e das informações que chegam até nós pelas mais diversas vias. Temos de estar despertos para onde e quando falamos destes assuntos, de forma a garantir que não passamos os nossos medos às Crianças. É essencial assegurar a existência de um sentimento psicológico de segurança à sua volta, e manter a nossa atitude de Esperança e de Amor de forma a que se sintam seguras e rodeadas de Adultos que sabem que vão cuidar delas e estar lá para elas em todos os momentos.
- Para que os Adultos se mantenham calmos, é essencial assegurar que também eles dispõem de um espaço seguro para poderem expressar as suas emoções e pensamentos com outros Adultos, mas sempre de forma a que esses sentimentos e emoções não sejam transmitidos às Crianças.
- Manter as rotinas diárias da forma mais estável possível, na casa e na escola. Sair, brincar, passear, atividades, aproveitar os momentos em família;
- Fazer sentir aos pais que estamos lá para eles. Organizar encontros fora do horário das Crianças, para que o assunto possa ser abordado, bem como as formas de ajudar e apoiar.
- Temos de observar as Crianças e perceber se vemos algumas mudanças. É muito provável que até os mais pequenos sintam que alguma coisa se passam e que sinta uma necessidade de sentir mais segurança. Muitas vezes a única coisa que precisam é de um abraço, ou mais abraços do que normal, que o faça sentir essa segurança e que lhes assegure que estamos lá.
Crianças dos 3 aos 6 anos
- Nesta faixa etária as Crianças acabam por estar mais expostas ao que acontece, porque ouvem os Adultos a falar, veem os Adultos tristes, a chorar ou a reagir de forma preocupada, porque estão angustiadas com o que se passa com pessoas que conhecem ou de uma forma geral com o que se passa no mundo. Podem também ver imagens no ecrã ou pegar num jornal, e ao serem tão atentas e ao observarem tudo, é natural que coloquem as mais diversas questões sobre o assunto, pois mesmo não estando envolvidas diretamente na guerra, podem facilmente saber que alguma coisa se passa, pois estão atentas a todas as mudanças. Devemos, então, ter tempo e tornar possível às Crianças falarem e colocarem todas as questões que possam ter.
- Como pais e professores temos de estar atentos e garantir que sabem que podem falar sobre isso e que estamos efetivamente lá para as ouvir.
- É preciso também ter atenção que há Crianças muito abertas e que falam do que viram e ouviram, mas outras não são assim. Podem ficar quietas e carregar o medo sem saberem como falar disso, o que não significa que não estejam atentas ao facto de que alguma coisa está a acontecer. Também essas Crianças devem ser convidadas a uma conversa e devemos estar muito atentos ao que se passa nas suas mentes. Outras vezes, as Crianças tentam assegurar que não mostram os seus medos pois não querem perturbar os Adultos que por si só já estão tristes e preocupados.
- É, no entanto, crucial manter o equilíbrio e nunca força-las a uma conversa que podem não querer ter ainda, ou então, sobretudo com as mais novas, ou para a qual não sintam qualquer necessidade.
- Numa escola de Crianças entre os 3 e os 6 anos não precisamos de juntar todas as Crianças e falar em grupo sobre o que se passa no mundo. Não nos podemos esquecer que há Crianças que podem não estar preparadas ou sequer sentir necessidade de conversar. Mas temos de observar atentamente cada Criança, “parece que estás triste hoje, alguma coisa que estejas a pensar?”, e tornar possível à Criança, ou a um pequeno grupo de Crianças, e abordar a situação e o que estão a sentir. É essencial mostrar que está aqui um Adulto que quer garantir que elas estão seguras e que sabem que podem falar sobre tudo.
- Temos de ser honestos a partilhar os nossos pensamentos e as nossas emoções sem, no entanto, sobrecarregar as Crianças. Podemos partilhar que estamos perturbados com algo, mas não é um fardo em relação ao qual a Criança deva estar preocupada. Devemos partilhar que elas podem sentir-se assim, e que nós também, e que nos podemos ajudar e confortar-nos uns aos outros.
- Em geral na sala de aula e na família, podemos descobrir como criar uma atmosfera onde está tudo bem em ter medo, estar triste ou preocupado. Mas ao mesmo tempo que os Adultos podem mostrar que se preocupam, devem também garantir que a Criança sabe que esses Adultos estão bem, que sabem tomar conta de si próprios e que vão continuar a ser Adultos que tomam conta dos seus próprios sentimentos, não sendo as Crianças que o terão de fazer.
- Falar com a Criança de uma forma que ela compreenda. Explicar um conflito a Crianças entre os 3 e os 6 não é muito possível ou sequer justificável, até para nós por vezes é difícil de compreender. O foco deverá estar na forma como o conflito afeta as pessoas e como as podemos ajudar.
- Quando as Crianças são expostas a notícias, onde se mostram as mesmas imagens vezes sem conta (bombas a cair, fogos), para elas é difícil compreender se é algo novo ou uma repetição. E ao pegarem em todos esses pedaços de informação, podem não ter um entendimento claro do que se passa. Têm a noção que algo de terrível se passa e que afeta muitas pessoas, mas não sabem se é à nossa porta ou noutro país. Sobretudo as mais novas ainda têm uma visão pouco clara em termos geográficos, pelo que nestes casos a utilização de um mapa ou globos pode ajuda-los a colocar as coisas em perspetiva.
- Devemos, naturalmente, limitar a exposição o máximo possível. De qualquer forma, o foco deverá ser sempre no que está a ser feito para encontrar soluções. Há sempre alguém a ajudar e devemos sempre apontar e fazer notar isso. Estão a haver reuniões entre políticos, negociações, e que há muitas pessoas a tentar encontrar soluções pacificas e diplomáticas de resolver conflitos, e comunidades por todo o mundo se têm juntado para ajudar. Não podemos explicar a origem do conflito, mas há pessoas a darem o seu melhor para restaurar a Paz. As Crianças mais velhas também podem perceber que há uma Comunidade Internacional cujo papel é proteger os países e encontrar soluções para a guerra.
- Por vezes as Crianças querem ajudar, mesmo as mais novas, que veem fotografias de pessoas a protestar, a recolher ajuda para Refugiados, ou a verem diretamente Refugiados a chegar ou a ser acolhidos. Uma forma de ajudar as Crianças a melhor lidarem com a situação ou com o medo, é serem ativamente envolvidas: “eu também posso fazer alguma coisa sobre isto”.
- Também as escolas podem promover iniciativas, como uma recolha de fundos por exemplo para atribuir a ONGs que ajudem Crianças da guerra, ou quaisquer outras formas que possam surgir. Todos sentimos que devíamos fazer algo para ajudar, e muitas vezes pensamos que não podemos fazer nada, mas talvez seja só ir aos vizinhos e perguntar como se sentem, oferecer alguma coisa, escrever uma petição, podem ser coisas pequenas, grandes, políticas, privadas, mas é importante que ajudemos e envolvamos as Crianças da forma apropriada para a sua faixa etária.
Crianças dos 6 aos 12 anos
- Para as Crianças do segundo plano é importante deixar claro que cultura não se confunde com nacionalismo ou com um sistema político. É bom termos orgulho na nossa cultura, mas não é bom pensarmos que o nosso país é melhor que outro, e também não precisamos de concordar com o sistema político. As Crianças precisam de saber que as culturas não precisam de ser envolvidas nesse conflito.
- Também temos de ajuda-las a pensar na extensão da sua habilidade para ter compaixão, o sofrimento que podemos procurar minimizar nos outros. Especialmente as Crianças dos 9 aos 12 anos sentem que precisam mesmo de fazer algo como angariar dinheiro, encontrar formas de apoiar organizações internacionais. Nesta fase do segundo plano, as Crianças são muito focadas no que tem sido feito por pessoas que querem Paz, e o que a nossa comunidade faz em termos de construção da Paz na nossa própria comunidade.
- Nas comunidades das nossas salas temos conflitos, mas que não são armados, não representam grandes ameaças ao futuro, mas precisam de ser encarados, e as Crianças sabem isso, e esperamos que tenham aprendido estratégias para lidar com esses conflitos. É preciso ajudar as Crianças a pensar sobre conflitos: “Este conflito é sobre coisas? Território? Estados? Quem decide?”. Pode ser difícil para estas Crianças, sobretudo as mais novas (6, 7 anos) pensarem em conflitos que não tenham solução. Vemos facilmente Crianças em conflito com alguém, incluindo familiares, e no dia seguinte está tudo bem. Para elas é mais difícil compreender “porque não podemos todos ser simplesmente amigos?”.
- Temos de os ajudar a corrigir mal entendidos que possam surgir da exposição às notícias ou conversas, seja sobre onde se passa, quem está no conflito, e ajuda-los a corrigir esse mal entendidos que podem ser catastróficos no seu interior se pensarem que está tudo muito próximo e eminente. As Crianças mais novas (6/7 anos) ainda não têm um forte sentido de tempo e espaço linear e podem dessa forma projetar que, se alguma coisa está a acontecer hoje a alguém, amanhã pode acontecer também a elas. E estas coisas têm de ser faladas com as Crianças, de forma a que fiquem mais calmas e com uma clara moldura temporal e espacial do conflito.
- Todas as características deste segundo plano de desenvolvimento são no sentido de tentar compreender o dilema humano. Mais do que explorar a questão da bondade ou maldade intrínseca do Ser Humano, devemos explorar a questão de como os Seres Humanos têm navegado perante os dilemas que surgem e como encontram soluções cada vez melhores para eles próprios. Com uma sensibilidade acrescida para as questões sociais e humanas, é preciso assegurar que o foco não está na bondade ou maldade intrínseca das pessoas (isso seria fácil e assim teríamos sempre alguém para culpar), mas ao mesmo tempo não ser relativistas ao ponto de “é tudo subjetivo e por isso não interessa”. Quando falamos com as Criança seja sobre o que for, devemos sempre questionar “o que a História realmente nos ensina sobre nos próprios?”. A verdade é que não terminámos ainda como espécie no nosso desenvolvimento. Criámos grandes invenções, que eram inconcebíveis há centenas de anos, temos a capacidade de mudar o nosso ser, aprendemos a ler, talvez quem sabe possamos também programar os nossos pensamentos também para a Paz.
- Não podemos mentir sobre a morte, faz parte da vida. Como podemos lidar com isso? Juntos.
Independentemente da faixa etária onde se encontrem, é crucial, para todas as Crianças, OBSERVAR eventuais mudanças de comportamentos, padrões de sono ou alimentação, durante estas crises, que nos possam sinalizar que algo precisa de ser falado, esclarecido ou assegurado.
A nós, como Adultos, cabe-nos assegurar a sua segurança mental e emocional e garantir que também nós estamos equilibrados. No entanto, como podemos faze-las sentirem-se seguras se não nos sentimos seguros? Temos de cuidar de nós próprios e recorrer ao que sabemos que nos acalma (passear na floresta, meditação, cozinhar). O que melhor funcionar para colocar-te em equilíbrio é o melhor que podes fazer pela tua Criança.
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