“As Crianças estão psicologicamente esmagadas e cansadas. Quando fazemos actividades como cantar com elas, elas não respondem de todo. Elas não riem como fariam normalmente. Elas desenham imagens de crianças a serem esquartejadas na guerra, ou tanques, ou o cerco e a falta de comida”.
Professor na cercada cidade de Madaya para a Save the Children.
Esta citação abre um estudo recente intitulado de “Feridas Invisíveis” e publicado pela Save the Children Fund, que teve por fim examinar a saúde mental e o bem-estar físico das Crianças sírias. Este estudo atestou o que Maria Montessori defendeu arduamente: com o apoio certo, estas Crianças podem ser reabilitadas.
É impossível não nos deixarmos emocionar e revoltar com as imagens assombrosas que nos chegam dos efeitos devastadoras da guerra, entre as quais as que relatam o sofrimento e a dor das Crianças.
Na Síria, em conflito há mais de sete anos, as Crianças experimentam graves e perturbadores desafios emocionais que terão efeitos sobre o seu desenvolvimento cognitivo, emocional e físico, podendo a próxima geração de sírios enfrentar uma capacidade mental e física severamente diminuída.
Maria Montessori, que também viveu em clima de guerra, não ficou indiferente à importância de se tentar fazer alguma coisa pelas Crianças vítimas da guerra, com traumas a marcarem profundamente a sua psique, com influencia directa no seu sistema nervoso, e a representarem efeitos incapacitantes para o resto das suas vidas. Dedicou parte dos seus estudos e esforços na procura de uma forma de enfrentar a devastação psicológica destas Crianças, o que concluiu ser possível através de um forte e concreto programa de educação.
Os Traumas de guerra nas Crianças
Em 1916 Maria Montessori observou, a propósito dos traumas criados pela guerra e através das observações que realizou, que “Encontra-se, nestas crianças refugiadas, uma forma especial de perturbação mental, que constitui uma ferida mental real – uma lesão que é tão grave, se não mais grave, do que feridas no corpo físico. Imagine estas inúmeras pequenas vítimas, que sofrem; sofrem de fome e de fadiga; muitas vezes feridas fisicamente também; que sofrem de infecções de todo tipo; mas também desta lesão mais profunda e prolongada do sistema nervoso. Sabemos que o tratamento de doenças nervosas não pode ser feito através da medicina. O tratamento do sistema nervoso ou dos nervos pode ser correctamente alcançado pela educação.“
Esses traumas, bem longe do alcance da experiência humana típica, conduzem a níveis surpreendentes de dano e dor, fazendo com que essas Crianças não consigam comer, dormir ou interagir com outras pessoas.
Actualmente, várias organizações como a Save the Children, Médicos Sem Fronteiras e a Human Rights Watch relatam a existência de doenças psicológicas graves, como a depressão, a ansiedade e a psicose, bem como de um aumento da automutilação e tentativas de suicídio nos campos de refugiados.
Tal como refere Melissa Fleming, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, “as crianças refugiadas correm o risco de se tornarem numa geração perdida de crianças não educadas, traumatizadas e perigosamente frustradas. E, no entanto, elas falam da educação como a coisa mais importante das suas vidas, porque as ajudam a concentrar-se numa esperança e não no ódio, nos seus futuros e não nos pesadelos do seu passado “.
Cruz Branca
Maria Montessori acreditava no poder transformador de uma educação de desenvolvimento, e que os melhores impedimentos para a guerra eram o fortalecimento do carácter, a nutrição do espírito e o que passou a ser conhecido como a psicologia positiva. Esta psicologia revela um princípio fundamental de “Paz através da Educação“, muito presente em Montessori, e que marcou profundamente o desenvolvimento do seu Método.
Com base neste entendimento Maria Montessori defendeu a criação da Cruz Branca, uma associação humanitária supranacional “daqueles que desejavam salvar o futuro da humanidade e sarar as feridas nos corações dessas Crianças”. Esta foi pensada para funcionar em paralelo com a Cruz Vermelha, com o objectivo de desenvolver a aplicação do Método Pedagógico em benefício de Crianças traumatizadas pela guerra. A cor branca foi escolhida para defender o sistema nervoso, diferente da Cruz Vermelha, que representava o sangue de soldados feridos.
De acordo com Maria Montessori, as pessoas a integrar a referida organização iriam ter formação específica em “primeiros socorros, conhecimento de doenças nervosas, dietética para lactentes e crianças, separação, psicologia especial, ciência doméstica, agricultura, linguagem e um curso teórico e prático no Método Montessori especialmente aplicado a essas Crianças“. O objectivo seria estarem preparadas para ensinar as Crianças a serem membros funcionais da sociedade.
Maria Montessori acreditava que através da estimulação dos sentidos das Crianças e pela repetição de actividades num ambiente estável, as Crianças poderiam efectivamente recuperar as suas faculdades mentais danificadas, caso contrário, os sintomas tenderiam unicamente a piorar.
De facto, algumas actividades e materiais implementaria com base neste entendimento acabaram por se mostrar apaixonantes e eficazes, servindo ao longo do tempo para despertar os sentidos das Crianças entorpecidos pela guerra e ajudá-las
No entanto, esta abordagem inovadora encontrou uma forte oposição relativamente às convenções médicas da época, e ninguém respondeu à sua chamada. Maria Montessori não desistiu de lutar arduamente para a criação desta organização. Muitos aplaudiram os seus esforços, mas ninguém concedeu apoio financeiro, cingindo-se esse apoio às iniciativas que proporcionavam alívio material exclusivo para Crianças.
Os contornos da guerra actualmente cada vez mais se direccionam para o ataque de civis, pois é cada vez mais ténue a fronteira entre os militares estaduais e as milícias locais. De acordo com as Nações Unidas, actualmente 90% das vítimas de guerra são civis, representando as Crianças uma proporção considerável do número de mortes à medida que as escolas e os hospitais vão sendo atacados em violação de todas as leis humanitárias internacionais de Direitos Humanos.
As ideias de Maria Montessori têm inspirado o trabalho de várias organizações envolvidas no resgate de civis e prestação de cuidados, o que constitui uma forte esperança para o futuro. No entanto, vemos os países a fecharem as suas portas aos refugiados e vemos tantas ONGs com cada vez menos recursos, fazendo-nos lembrar algumas das dificuldades sentidas por Maria Montessori quando pensou na implementação da Cruz Branca,
Nesta semana em que se celebra em muitas nações do mundo o Dia Internacional da Criança, não podemos deixar de questionar e levantar os enormes obstáculos que estas encontram ao seu refúgio, ao seu tratamento, ao seu futuro, à recuperação dos seus traumas. Há uma longo trabalho pela frente no que respeita a uma mudança de mentalidade que é fundamental para erradicar os motivos que estão na base de qualquer guerra, sendo um trabalho da responsabilidade de todos nós, pois a solução, tal como defendia Maria Montessori, reside na Educação das Crianças. Estes adultos de amanhã contêm em si o futuro da Humanidade.
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